miércoles, 24 de septiembre de 2008

João Cabral de Melo Neto
Os Três Mal-Amados

O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu
minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu
meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu
escrevera meu nome.

O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu
metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o
número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha
altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.

O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas.
Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus
testes mentais, meus exames de urina.

O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus
livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras
que poderiam se juntar em versos.

Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha,
escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o
uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no
banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.

O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e
das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas
dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.

O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a
escrever meu nome.

O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos
olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre
nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua
chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do
largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma
mulher, sobre marcas de automóvel.

O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos
mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras,
comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares,
cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas
chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia.

Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em
verso.

O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os
minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minhamão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta.
Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em
volta da sala.

O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu
inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo
da morte.

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